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O aprendizado de línguas ao longo de um século

Ricardo E. Schütz
Atualizado em 5 de novembro de 2012

Uma história do século passado

Por volta de 1880, o francês François Gouin, homem de meia-idade, resolve aprender a falar alemão. Se estabelece então na cidade de Hamburgo, longe de seus conterrâneos, e lá permanece durante um ano. Só que em vez de procurar se integrar à sociedade alemã, fazendo amizades e convivendo com pessoas, ele se aprofunda numa série de tentativas de dominar a língua através do estudo da gramática e da decoreba de palavras em grande quantidade.

Assim que chega em Hamburgo, François se entrega com devoção ao seu primeiro projeto: decorar uma gramática de alemão junto com uma tabela de 248 verbos irregulares! Alcança seu intento em apenas 10 dias e corre para a universidade local para testar seu vasto conhecimento recém adquirido. "Grande decepção!", afirma ele em seu livro mais tarde. "Não conseguia entender uma única das palavras dirigidas a mim."

Sem desanimar, François retorna à solidão de seu quarto, dessa vez decidido a decorar os radicais e as declinações do alemão, e redecorar a gramática e os verbos irregulares. Qual nada! O resultado acaba sendo o mesmo que o anterior. Ao longo daquele ano que havia reservado para se dedicar ao aprendizado de alemão, François decorou livros, traduziu Goethe e Schiller, e chegou a decorar 30.000 palavras de um dicionário de alemão, tudo isso no isolamento de seu quarto, e tudo resultando sempre no mesmo desastre: sua incapacidade de se comunicar com o povo alemão. Por mais que acumulasse informações e adquirisse conhecimento a respeito do idioma, sua habilidade de funcionar na sociedade alemã não saía da estaca zero. Ao final de um ano, tendo experimentado na própria carne a ineficácia do método tradicional, François não vê outra alternativa senão a de encarar o fracasso e retornar para casa.

A história de François, entretanto, tem um final parcialmente feliz. Ao retornar, ele descobre que seu sobrinho de 3 anos de idade, durante sua ausência, havia passado pelo milagroso processo de aprender a falar, transformando-se de um nenê sem expressão verbal em um verdadeiro conversador em francês. Como seria isso possível? Como é que uma simples criança sem conhecimento nem experiência consegue com tanta facilidade aquilo que ele, homem letrado e experiente, havia tentado com uma segunda língua e fracassado?

Uma história hoje comum

Duas pessoas idênticas, com a mesma idade, mesmo talento para línguas e mesma motivação, resolveram aprender inglês. Uma foi matriculada num bom curso de línguas, e a outra foi para um país de língua inglesa para morar com uma família e lá se envolver com qualquer atividade. Dois ou três anos depois, entrevistamos aquele que estudou diligentemente no curso de línguas. Ele provavelmente dirá (já ouvi isso muitas vezes):

A escola é boa, já terminei o Livro X e aprendi muito vocabulário, gramática ... Mas, não sei não, eu tenho um problema, me sinto muito trancado. No contato com norte-americanos, me limito a responder perguntas. Não tenho coragem de puxar um assunto. Quando ligo a televisão na CNN, não entendo nem a metade. Em reuniões com estrangeiros, só me manifesto quando a palavra é dirigida a mim; tenho dificuldade em defender meus pontos de vista, contra-argumentar. Aquelas situações do livro que eu praticava na sala de aula parecem nunca ocorrer na minha realidade.

Diagnóstico: Os anos de tempo e o dinheiro investidos numa escola que enfatiza o estudo da gramática (learning) ou a prática de exercícios orais repetitivos, seguindo uma marcha predeterminada atrelada a um plano didático de lições e livros, resultaram em um conhecimento parcial e memorizado a respeito do idioma, o qual entretanto o aluno tem dificuldade para transformar em habilidade funcional. Habilidade truncada; carência de espontaneidade; não consegue pensar em inglês. Autoconfiança parcialmente destruída pela preocupação com a forma correta e por uma certa dose de frustração e sentimento de inferioridade. Em ambientes da língua e da cultura estrangeira, se sente como um peixe fora d'água. Vontade de parar por algum tempo.

Entretanto, quando entrevistamos aquele que acabou de retornar do país de língua inglesa, depois de 6 ou 12 meses de convívio numa cultura estrangeira, vemos que ele fala com naturalidade, desenvoltura e fluência. Pensa em inglês e se sente à vontade na presença de estrangeiros. É uma pessoa que, onde ouve inglês sendo falado, é com ele mesmo: tem satisfação de mostrar esta habilidade já adquirida. Facilmente consegue trabalho, inclusive como instrutor em cursos de inglês menos exigentes. Enquanto tiver contato com o idioma, continuará a desenvolver sua habilidade, de forma auto-suficiente.

Se a ele perguntarmos (já que é tão bom em inglês):

Afinal, quando é que se usa o Perfect Tense e quando o Simple Past, ou se lhe perguntarmos para explicar melhor o uso dos verbos modais, ele responderá: - Não me pergunta uma coisa dessas, eu não sei nada; nunca estudei isso, eu só sei é falar ...

Diagnóstico: Pouco ou nenhum conhecimento a respeito do idioma, porém pleno domínio sobre o mesmo adquirido através de interação humana em ambiente de cultura estrangeira (acquisition). Sua habilidade pode facilmente ser transformada em conhecimento gramatical. Alto grau de desembaraço e autoconfiança. Sentimento de realização e auto-suficiência. Forte vontade de continuar. Inglês sempre fará parte de sua vida.

História do ensino de línguas

As duas histórias acima ilustram a evolução da metodologia de ensino de línguas.

Muitas teorias sobre aprendizado e ensino de línguas já foram propostas, sempre diretamente influenciadas por duas ciências: a linguística e a psicologia. As abordagens ao ensino de línguas se sucedem ao sabor das tendências de cada época, e podem ser resumidas a três movimentos importantes:

Grammar-Translation:

Óculos

Desde o século 18 até meados do século 20 (e até hoje na maioria das escolas de ensino médio) a metodologia predominante foi sempre tradução e gramática. Esta abordagem é calcada na idéia de que o aspecto fundamental da língua é sua escrita, e de que esta é determinada por regras gramaticais. Teve sempre como objetivo principal explicar a estruturação gramatical da língua e acumular conhecimento a respeito dela e de seu vocabulário, com a finalidade principal de se estudar sua literatura e traduzir. A metodologia de tradução e gramática foi muito usada até meados do século 20, quando começou a cair em descrédito devido à sua ineficácia em produzir qualquer habilidade oral.

Audiolingualism:

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O primeiro grande movimento em oposição ao método tradicional de gramática e tradução ocorreu por volta dos anos 50, quando o behaviorismo de Skinner na área da psicologia e o estruturalismo de Saussure e Bloomfield na área da linguística estavam na moda. Os linguistas de então passaram a valorizar a língua na sua forma oral. Sustentavam que o aprendizado de línguas estaria relacionado a reflexos condicionados, e que a mecânica de imitar, repetir, memorizar e exercitar palavras e frases seria instrumental para se alcançar habilidade comunicativa. Esta visão acabou dando origem aos métodos áudio-orais e audiovisuais, baseados em automatismo e atrelados a planos didáticos tipo Livro 1, Livro 2, etc. Tais métodos não dependem de instrutores realmente proficientes na língua estrangeira, sendo fáceis de serem montados e baratos de serem mantidos, sendo por esta razão até hoje bastante populares em cursinhos de inglês no Brasil. Com o declínio do prestígio da metodologia áudio-linguística, alguns cursos retornaram parcialmente ao método de tradução e gramática, acrescentando livros de exercícios escritos a seus programas.

Natural or Communicative Approaches (o construtivismo no ensino de línguas):

A primeira história demonstra um fato quase evidente, porém nem sempre consciente: que de todas as áreas de desenvolvimento humano, habilidades físicas, musicais e linguísticas são as que mais dependem de prática e menos de teoria. Este fato, que na primeira história havia deixado François Gouin perplexo, acabou levando um século para ser cientificamente explicado e iniciar uma nova tendência na metodologia de aprendizado e ensino de línguas.

A partir dos anos 70 e 80, surgem novas teorias nas áreas da linguística e da psicologia educacional. Piaget e Vygotsky, pais da psicologia cognitiva contemporânea, já haviam proposto que conhecimento é construído em ambientes naturais de interação social, estruturados culturalmente. Cada aprendiz constrói seu próprio aprendizado baseado em experiências de fundo psicológico resultantes de sua participação ativa no ambiente.

Noam Chomsky, por sua vez, revoluciona a linguística nos anos 60 afirmando que língua é uma habilidade criativa e não memorizada. Ao ressaltar o aspecto criativo das línguas, ele nega importância tanto ao ensino tradicional de línguas, baseado no estudo de regras gramaticais prescritivas e ditadas de fora, quanto na metodologia de repetição e memorização. O conceito de certo e errado cede lugar ao conceito de aceitável e inaceitável, baseado no desempenho de um representante nativo da língua e da cultura. Desta forma, o aprendizado de línguas passa a ser visto como competência intuitivamente construída e adquirida. Mais recentemente as idéias de Chomsky passaram a inspirar a metodologia de ensino de línguas na direção de uma abordagem humanística baseada em comunicação e intermediação de um facilitador carismático, e com participação ativa do aprendiz.

Em 1985 o norte-americano Stephen Krashen traz ao ensino de línguas as teorias de Chomsky, Piaget e Vygotsky, e estabelece uma clara distinção entre estudo formal e assimilação natural de idiomas, entre informações acumuladas e habilidades desenvolvidas, definindo novos rumos para o ensino de línguas.

Em seu livro (Principles and Practice in Second Language Acquisition) Krashen define os conceitos de language learning e language acquisition e conclui que proficiência em língua estrangeira não é resultado de acúmulo de informações e conhecimento a respeito de regras gramaticais. Leva-nos à conclusão de que línguas são difíceis de serem ensinadas, mas serão aprendidas com mais facilidade se houver o ambiente apropriado, uma vez que o aprendizado de um idioma se dá pela assimilação subconsciente de seus elementos (pronúncia, vocabulário e gramática) em contextos sociais. Krashen aponta também para a conclusão de que o ensino de línguas eficaz não é aquele que depende de receitas didáticas em pacote, de prática oral repetitiva, ou que busca apoio de equipamentos eletrônicos e tecnologia, mas sim aquele que explora a habilidade do instrutor em criar situações de comunicação autêntica, naturalmente voltadas aos interesses e necessidades de cada grupo e cada aluno, que funciona não necessariamente dentro de uma sala de aula, que enfatiza o intercâmbio entre pessoas de diferentes culturas, e que dissocia as atividades de ensino e aprendizado do plano técnico-didático, colocando-as num plano pessoal-psicológico.

Na década de 1990 o canadense-norte-americano Steven Pinker reforça a credibilidade da teoria de Krashen em favor da assimilação natural de línguas estrangeiras. Em seu livro Language Instinct (1994) Pinker afirma que língua é um instinto, uma habilidade humana nata cujo desenvolvimento independe da racionalidade.

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Referências


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Schütz, Ricardo E. "O aprendizado de línguas ao longo de um século" English Made in Brazil <https://www.sk.com.br/sk-apren.html>. Online (data do acesso).